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terça-feira, novembro 02, 2010

FREUD E A ARTE


João A. Frayze-Pereira*

Como espectador, Freud confessa seus limites e suas afinidades estéticas, mas não deixa de oferecer à arte um modo de pensar:

"Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (...). Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos uti­lizados e dos efeitos obtidos em arte (...). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatu­ra e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à mi­nha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer." É com tais palavras que Freud (1914) se dirige aos seus leitores, tentando assegurar indul­gência para o resultado de suas incursões no campo das artes. Na posição de espectador, confessa seus limites e suas afinidades estéti­cas, sugerindo uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da Psicanálise - literatura e artes plásticas.
TRAGÉDIA E PINTURA

Nascida entre a medicina e a literatura, a Psicanálise tem lugar garantido no campo da construção ficcional, encontrando na tragédia uma chave para o trabalho de in­terpretação, uma vez que ela já oferece uma representação privilegiada do que é posto em jogo em uma Psicanálise: a relação do desejo com a castração (Lyotard). É diferente a situação da pintura. No pensamento de Freud, a questão principal é a seguinte: a tela, assim como uma cena oní­rica, representa um objeto ou uma situação ausentes que, censurados, só se dão a ver por meio de seus representan­tes simbólicos.
Como o sonho, o objeto plástico é pensado segundo a função de representação alucinató­ria e de ludíbrio. Aproximar-se desse objeto com palavras que permitem a apreensão de seu sentido significa dissipá-lo, assim como a conversão da imagem onírica em discurso conduz a significação para o espaço da racio­nalidade, rasgando o véu das representações sob o qual essa significação se ocultava. 0 objeto plástico, enquanto construção muda e visível, situa-se no espaço de realização imaginária do desejo. E é nisto que reside a função da arte, conforme aparece no ensaio Escritores criativos e devaneio (1908), quando Freud distingue dois componentes do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação com o perso­nagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece à percepção não como um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a propósito do qual são permi­tidos pensamentos e condutas com os quais o espectador pode se deleitar sem auto-acusa­ções nem vergonha.
Essa função de desvio com relação à realidade e à censura é uma característica das obras de arte. E, considerando que o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos significados reprimidos e incons­cientes, o trabalho artístico é entendido como uma atividade de expressão sublimada de desejos proibidos. E o artista, nessa medida, é concebido como um ser talentoso o bastan­te para transformar os impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é, culturais. Como os sonhos e os jogos de linguagem, o trabalho artístico facilita a expressão, o reconhecimento e a elaboração de sentimentos reprimidos, tanto para os artistas quanto para os espectadores que, por sua vez, compartilham com os primei­ros a mesma insatisfação com as renúncias exigidas pela realidade e, por intermédio da obra, a experiência estética. Assim, o vínculo entre psiquismo e arte pode chegar a ser concebido de um modo tão direto ou imediato que a singularidade da obra é perdida de vista, ao mesmo tempo em que o psiquismo passa a ser simplesmente ilustrado pela obra.
A partir dessa concepção de arte, duas são as perspec­tivas analíticas possíveis: privilegia-se o conteúdo, isto é, o motivo na pintura, e compreende-se o enquadramento plástico, conforme a função representativa, como um suporte atrás do qual se desenvolve uma cena inacessível; ou, então, busca-se, escondido sob o objeto representado, uma forma supostamente determinante do imaginário do pintor. Entretanto, através dessas análises, corre-se o risco de identificar efeito estético e efeito narcótico. Se a forma estética e uma espécie de véu destinado a subornar as defesas do destinatário, somos obrigados a admitir, parado­xalmente, que o efeito estético é anestésico (Thévoz). E, nesse sentido, no tocante à ordem social, tal visão da arte é conservadora.
PSICANÁLISE E ARTE MODERNA

Não é um exagero pensar que tudo o que importa em matéria de pintura, pelo menos após Cezanne (1839­-1906) - ao contrário da facilitação do adormecimento da consciência e da realização do desejo inconsciente do espectador -, é produzir no suporte uma espécie de análogo do próprio inconsciente, suscitando inquietude, revolta, perplexidade, interrogação. Desde o começo do século 20, a situação das obras parece não mais satisfa­zer as condições propostas por uma estética derivada de Freud. E isto porque o sinistro e o vazio descaradamente assaltam as formas. Se, ao ser comparada à arte clássica,a arte moderna mostra-se diferente é porque a angústia a perfura, subvertendo a sua função: a obra desublima as formas culturais, abrindo-as às forças disruptivas. E talvez seja esta uma razão pela qual Freud suspeitava da arte de seu tempo, contrária às suas convicções. Porém, se a análise freudiana parece inadequada à pintura é que não só a pintura diferenciou-se, mas no próprio tempo dos escritos freudianos (1895-1938), a arte já mudara de maneira e de temática.

Principalmente com as vanguardas, o espaço pictóri­co construído no Quattrocento decai e com ele a função da representação que ocupava o centro da concepção freudiana da arte. Assim, compreender a arte moderna com a noção de representação e sua correlata - a subli­mação - é ignorar a modernidade das artes. Ora, desde a primeira década do século 20, a Psicanálise coexiste com o modernismo. As obras de Klimt, Schiele, Moser e Kokoschka convulsionaram a Viena moderna de Freud, embora este nunca tenha se referido a tais artistas e nem mesmo a algum outro seu contemporâneo.
E, no entanto, é possível visualizar algumas aproxi­mações entre arte moderna e Psicanálise: o fascínio pela origem e o valor atribuído aos sonhos, às fantasias e à sexualidade; a sensibilidade à mulher, à criança e ao louco; a reflexão sobre o estranho, a alteridade e a intersubjetivi­dade. Além disso, os surrealistas inspiraram-se na Psica­nálise para elaborar suas idéias no campo visual e muitos outros incorporaram termos psicanalíticos em seus próprios discursos críticos como, por exemplo, repressão, sublima­ção, fetichismo... E, mesmo que a compreensão da arte tenha se diferenciado com os chamados pós-freudianos, a tese da leitura simbólica permanece, como se a obra de arte fosse sempre análoga ao sonho a ser decifrado, como se ela fosse a codificação de um enigma ou a representação de complexos estados mentais a serem decodificados. Trata-se de um modo de interpretar a arte que curiosamente pode se aproximar da crítica moderna da arte.
PSICANÁLISE COMO PERSPECTIVA CRÍTICA


Diferentemente da crítica moderna, entretanto, na ver­tente inaugurada por Baudelaire que põe o crítico como in­térprete entre público e artistas, a crítica da arte contem­porânea não se aproxima das obras sabendo o que elas são, pois tais obras resistem à crítica armada de valores esté­ticos pré-estabelecidos para interpretá-las e legitimá-las como arte. Nesse sentido, um aspecto importante da crítica contemporânea é a abertura a outras perspec­tivas com origens diversas - na Filosofia, nas ciências humanas e até nas ciências naturais. E muitos dos estudiosos que contribuem para esse campo não se consideram especialistas em estética, mas, antes, filósofos, antropólo­gos, teóricos da linguagem e, evidentemente, psicanalistas. No caso da Psicanálise a ques­tão é particularmente interessante porque, no século 20, constatamos a emergência de um sentir definido no âmbito da afetividade e da emoção que não se deixa reconduzir com facilidade às referências clássicas da estéti­ca, desenvolvidas na passagem do século 18 para o 19. Nessa medida, Freud é conside­rado um autor importante pela crítica de arte contemporânea.



Com efeito, considerando que o dis­curso psicanalítico não é normativo e que a Psicanálise compatível com a arte não pode ser "aplicada", mas implicada - isto é, derivada da arte ou engastada nela, pois não é uma forma pré-moldada a se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências teórico-conceituais -, a Psicaná­lise reivindicada pelas artes não é método de investigação da cultura, mas um modo de pensar que busca escapar da repetição ao infinito daquilo que teoricamente já se sabe. É a esse modo de pensar inventado por Freud que os analistas são obrigados a se referir, se pretendem estar fazendo Psicanálise e se pretendem expressar os sentidos de uma obra - clássica, moderna ou contemporânea.
A OBRA NO LUGAR DO ANALISTA


São basicamente dois os estudos de Freud que abordam as artes plásticas - Leonardoda Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) e Moisés de Michelangelo (1913). Se, no primeiro, Freud já tentava operar a partir do cruzamento entre dois pontos de vista, o endopoiético e o exopoiético - isto é, o que considera os constituintes internos à obra e o que considera os fatores provenientes do con­texto que a sustenta -, na leitura do Moisés, a primeira perspectiva fica mais clara, aprofundando o campo compreendido pelas estruturas subjetivas do artista que não se confundem com os dados biográ­ficos do criador. As estruturas subjetivas não são da ordem dos acontecimentos, mas resultam da transformação das relações entre exterior e interior. Nesse sentido, o critico que toma o partido das estruturas subjetivas não pode excluir de sua pesquisa sua pró­pria estrutura subjetiva (André Green). E, devido à implicação do sujeito no objeto, a interpre­tação será sempre arriscada, pois o intérprete está livre de um lado exatamente porque está ligado ao outro, podendo acontecer que as descobertas afetem sua relação com seu próprio inconsciente. E talvez seja este o tributo a ser pago por esta transgressão epis­temológica mediada por um outro - o universo oculto do artista implicado na obra.
Quando se trabalha com obras de arte, é preciso reconhecer este risco e aceitá-lo. No entanto, não é fácil manter-se aberto à alteri­dade que nos interroga, uma vez que as obras estão sempre a exigir de nós criação para delas termos experiência. É uma experiência propriamente estética que Freud elabora na relação com a peça de Michelangelo. Livre de todo jogo de projeções teórico-conceituais, Freud se deixa guiar pela obra ao analisar os seus detalhes plásticos e a sua fortuna crítica, dispondo-se a uma percepção nova: a obra como momento de uma história invisível a re­construir. E, a partir da hermenêutica formada no campo entre seu olhar e a obra, rompe com a ideologia artística da verdade universal, fixada anacronicamente. Diferente foi seu trabalho com Leonardo da Vinci. Embora a estética da criação esteja pressuposta, o artis­ta não é tratado como "divino", mas como um homem comum. Nesse caso, não é a estética a questão principal, mas a temática da vida.

0 que Freud faz é apontar para a troca contínua entre passado e futuro, mostrando que cada vida sonha enigmas cujo sentido final não está fixado em parte alguma, e exige liberdade criativa para a fiel retomada de si mesma. É, portanto, um equívoco eleger o Leonardo como modelo da aproximação psicanalítica das artes plásticas. Ao contrário, é a análise do Moisés que legitima essa relação, levando o analista a repensar noções constituídas no campo da inter­pretação: o contato com a obra suscita no espectador ques­tões a analisar. Mas, apesar de diferentes, os dois ensaios contestam o falado conservadorismo de Freud. Ao tratar um gênio clássico como homem comum, nosso autor reafirma a vocação da Psicanálise para a subversão do instituído.

E, com o ensaio sobre a escultura, quase meio século antes de a crítica ser sacudida com a tese de Duchamp - "são os espectadores que realizam as obras" -, Freud dá seus próprios passos na linha da estética da recepção. Com isso, a Psicanálise, talvez à revelia de seu inventor, entra dignamente no campo da crítica contemporânea, oferecendo às obras um modo de pensar que, como a arte, busca transcender a familiaridade das formas culturais.
Referências bibliográficas
FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908). Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1970, vol.IX, ps 135-143.
FREUD,S. O Moisés de Michelângelo(1914). Op.cit. vol. XII, ps. 249-280.
FREUD,S. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910). Op. Cit. Vol. XI, ps. 55-124.
GREEN, A. Revelações do inacabado. Rio de Janeiro, Imago Ed. Ltda, 1994.
LYOTARD, J. F. Freud selon Cézane. Des dispositifs pulsionels. Paris, Christian Bourgois, 1980, ps.67-88.
THÉVOZ, M. Art, folie, graffiti, LSD, etc. Suisse, Editions de l’Aire, s/d.

[Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP.Membro da Association Internationale des Critiques d’Art (AICA).]
Fonte Mente e Corpo[ Novos Parceiros de Literacia]
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Um comentário:

  1. Excelentes passagens. Há pouco conversava à respeito com das posições freudianas sobre a arte e gostei das considerações a respeito de inovações no discurso psicanálítico contestando essa obsessão de freud pelo elemento erótico. No seu argumento o próprio Freud fazia refletir na sua análise suas próprias frustações. Hoje sabemos que novas abordagens focam nas potencialidades, no desenvolvimento de capacidades e talentos, e, principalmente, na satisfação que novas formas de comunicação propícia; não sendo, a despeito disso, necessário focalizar a construção dos símbolos como registros de taras, tabus, erotismo, distúrbios psíquicos e interdições do ser.

    Atenciosamente,

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